terça-feira, 28 de julho de 2009

Carlos Chagas e a descoberta de uma nova tripanossomíase humana






Centenário

Doença de Chagas

Em abril de 1909, Carlos Chagas (1878-1934), pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz (IOC), comunicou ao mundo científico a descoberta de uma nova doença humana. No ano anterior, Chagas já havia sido capaz de identificar seu agente causal - o protozoário que denominou de Trypanosoma cruzi, em homenagem a Oswaldo Cruz - e o inseto transmissor, conhecido como barbeiro. A “tripla descoberta” de Chagas, considerada única na história da medicina, constitui um marco na história da ciência e da saúde brasileiras. História da doença de Chagas: ciência, saúde e sociedade

Simone Petraglia Kropf

Casa de Oswaldo Cruz, Fiocruz, Expansão, 20040-361, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Email: simonek@coc.fiocruz.br

A história da doença de Chagas se inicia com uma tripla descoberta, no interior de Minas Gerais. Em abril de 1909, Carlos Chagas (1878-1934), pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz (IOC), comunicou ao mundo científico a descoberta de uma nova doença humana. Seu agente causal (o protozoário que denominou de Trypanosoma cruzi, em homenagem ao mestre Oswaldo Cruz) e o inseto que o transmitia (triatomíneo conhecido como “barbeiro”) também haviam sido por ele identificados, ao final de 1908. O “feito” de Chagas, considerado único na história da medicina, constitui um marco decisivo na história da ciência e da saúde brasileiras.

Trazendo uma contribuição inovadora ao campo emergente da medicina tropical e dos estudos sobre as doenças parasitárias transmitidas por insetos-vetores, Chagas traria a público não apenas uma nova entidade nosológica, mas a realidade sanitária e social do interior do país, assolado pelas endemias rurais. Enaltecida por Oswaldo Cruz como a maior das “glórias de Manguinhos”, a descoberta trouxe imediato prestígio e projeção ao jovem cientista, que receberia várias distinções acadêmicas no Brasil e no exterior, tendo sido indicado ao Prêmio Nobel por duas vezes.

Dedicando sua vida profissional, junto a seus colaboradores, a investigar os vários e intricados aspectos da nova enfermidade, Chagas deu início a uma tradição de excelência acadêmica que se espraiaria de Manguinhos para outros centros científicos no Brasil e no continente americano. Ao mesmo tempo, chamou a atenção sobre a necessidade do enfrentamento concreto desta e outras endemias do interior, intimamente associadas à pobreza, gerando uma mobilização que ocuparia, a partir de então, as tribunas da política e das instituições de saúde.

A trajetória da produção de conhecimentos e ações sobre a doença de Chagas, ainda que iniciada sob a marca do “feito singular” de um cientista, tem sido, desde 1909, um empreendimento coletivo, a articular, em distintos contextos históricos e sociais, os cientistas e outros grupos sociais, na busca por novos conhecimentos e ferramentas para lidar com este importante problema. Marcado por conquistas e vitórias, mas também por críticas e incertezas, por conflitos e por acordos, por trilhas abandonadas e outras continuadas, por continuidades e descontinuidades, o percurso da doença de Chagas ao longo destes cem anos nos fala das relações entre ciência, saúde e sociedade.

Este segmento Historia tem o objetivo de apresentar alguns dos principais marcos nesta trajetória, abordando a biografia de Carlos Chagas, o processo da descoberta e os contextos em que ela esteve inserida, a produção dos conhecimentos sobre a doença, sua importância social e as iniciativas para combatê-la. Reunindo textos elaborados por historiadores e por alguns dos próprios médicos e cientistas que fizeram, e ainda fazem, esta história, a produção da memória sobre o tema é tecida mediante distintos olhares, perspectivas e abordagens.

A presença da história, neste Portal, junto aos segmentos que apresentam os conhecimentos e perspectivas relacionadas à doença hoje, em seus vários campos disciplinares, materializa a preocupação comum a todos os que se associam ao legado de Carlos Chagas, com o objetivo de disseminá-lo entre as novas gerações, nas instituições de ciência, saúde e educação e nos tantos outros espaços da vida social do país e do continente americano: suscitar a reflexão sobre o passado, e, a partir do presente, pensar os desafios que nos convidam a planejar o futuro.

Carlos Chagas e as campanhas contra a malária

Simone Petraglia Kropf

Casa de Oswaldo Cruz, Fiocruz, Expansão, 20040-361, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Email: simonek@coc.fiocruz.br

Na passagem do século XIX ao XX, no contexto de difusão da teoria do parasito-vetor constitutiva da medicina tropical mansoniana, o mundo científico foi marcado por uma intensa busca por transmissores alados para as doenças, especialmente insetos sugadores de sangue, como os mosquitos. Para subsidiar as investigações médicas com conhecimentos especializados sobre as características biológicas destes insetos, o Museu Britânico

de História Natural deu início, em 1898, a um amplo levantamento dos mosquitos existentes em todo o mundo. Como mostram Benchimol e Sá (2006), o debate sobre os artrópodes vetores de doenças fez da entomologia médica uma área de conhecimento cada vez mais em evidência. Adolpho Lutz, então diretor do Instituto Bacteriológico de São Paulo, era a principal autoridade científica nesta área no Brasil. Em permanente intercâmbio com os pesquisadores e instituições internacionais, exerceria grande influência sobre outros cientistas que seguiriam por este caminho.

Oswaldo Cruz realizava trabalhos de coleta e classificação de insetos do Brasil, tendo identificado, em 1901, uma nova espécie de anofelino às margens da Lagoa Rodrigo de Freitas. Em1906, a contratação de Arthur Neiva veio reforçar a área no Instituto de Manguinhos, do qual Lutz se tornaria pesquisador em 1908. Tendo como referência os trabalhos de Lutz, Cruz e Neiva, Chagas publicou, em 1907, trabalhos sobre os culicídios brasileiros, com a descrição de novas espécies.

O desenvolvimento da entomologia médica no Instituto – e a inserção de Chagas neste processo – estiveram diretamente relacionados com uma importante frente de ampliação da instituição, acionada por Oswaldo Cruz. Reproduzindo uma prática comum entre os médicos e microbiologistas europeus que se deslocavam para a África e a Ásia a fim de combater epidemias e estudar as doenças tropicais, os pesquisadores de Manguinhos engajavam-se em expedições científicas a diversos pontos do território nacional. Tais missões serviam tanto para estudar as condições sanitárias das distintas regiões, como para debelar crises epidêmicas que prejudicavam as obras de companhias públicas ou privadas associadas à modernização do país. Em função da expansão demográfica e econômica, a realização destas obras, sobretudo das que adentravam matas e regiões inóspitas, era freqüentemente acompanhada de surtos epidêmicos, especialmente de malária. Isso se dava em geral quando da construção das ferrovias, cujas linhas e ramais se multiplicavam pelo território nacional visando a um escoamento mais eficaz da produção agrícola para exportação.

Estas viagens reforçavam a identidade social do Instituto Oswaldo Cruz como instituição comprometida com a solução de questões de saúde pública de interesse nacional. Por outro lado, elas funcionavam também como impulsionadoras da própria pesquisa em torno das novas questões da medicina tropical que surgiam no ambiente médico-científico. Nestes canteiros de obras, os pesquisadores realizavam a coleta de materiais, experiências e estudos sobre temas variados da nosologia brasileira, relacionados tanto a aspectos médico-sanitários, quanto a questões biológicas concernentes aos parasitos e vetores. Foi justamente por meio de viagens como estas que Chagas refez seu vínculo com Manguinhos e com o tema da malária (estudado por ele em sua tese de doutoramento), desenvolvendo habilidades e conhecimentos específicos que o levariam àdescoberta de uma nova doença tropical em 1909.

Em 1905, a Companhia Docas de Santos solicitou a Oswaldo Cruz, que chefiava a Diretoria Geral de Saúde Pública, providências para combater uma epidemia de malária entre os trabalhadores que construíam uma hidrelétrica em Itatinga, destinada a abastecer o porto de Santos. Em função de seus conhecimentos sobre a doença, Chagas foi incumbido de coordenar as ações de profilaxia. Esta foi a primeira campanha antipalúdica realizada no Brasil com base nos conhecimentos sobre o papel dos mosquitos como transmissores.

Em fevereiro de 1907, missão semelhante foi iniciada por ele, em parceria com Arthur Neiva, em Xerém, na Baixada Fluminense, onde a doença prejudicava os trabalhos de captação de água para a capital federal, realizados pela Inspetoria Geral de Obras Públicas.

Em junho daquele ano, igualmente por solicitação de Cruz, Chagas partiu para o norte de Minas Gerais, em nova empreitada contra a malária, juntamente com Belisário Penna que, como ele, era médico da Diretoria Geral de Saúde Pública. Na região do rio das Velhas, entre Corinto e Pirapora, uma epidemia da doença paralisava as obras de prolongamento da Estrada de Ferro Central do Brasil, cujo objetivo era integrar o Sul ao Norte do país mediante a ligação do Rio a Belém do Pará. No povoado de São Gonçalo das Tabocas (onde se construía uma estação da ferrovia e que, com a inauguração desta em 1908, ganharia o nome de Lassance, em homenagem a um engenheiro da Central do Brasil), Chagas instalou um pequeno laboratório num vagão de trem, que também usava como dormitório. Foi no decorrer das atividades desta campanha que se realizou a descoberta da doença que leva seu nome, que o consagraria internacionalmente.

Desde que pesquisadores ingleses e italianos desvendaram, em 1898/99, o modo de transmissão da malária pelos mosquitos, estudiosos dedicaram-se, em diversos países, a estabelecer medidas para a prevenção e o combate à doença, voltadas para seus dois elementos essenciais: os vetores e o indivíduo portador do parasito. Em trabalho de 1906, Chagas analisou de maneira pormenorizada as diferentes estratégias contra a malária. “Poder-se-á sintetizar num duplo intuito a profilaxia do impaludismo: impedir que o homem doente contamine o culicídio transmissor, evitar que o culicídio parasitado infecte o homem são. [...] A profilaxia será, por isso mesmo, anticulicídica, quando aplicada ao mosquito, e germicida, quando à destruição do hematozoário na fase endógena da evolução dele”.

As ações contra os vetores contemplavam métodos de natureza ofensiva e defensiva. O primeiro era o combate direto aos anofelinos, por meio de campanhas, de feição militar, visando a sua eliminação. As “brigadas contra os mosquitos”, termo cunhado pelo inglês Ronald Ross, deveriam atacá-los em seu estágio larval aquático, tanto por meio de aplicação de substâncias tóxicas (como o petróleo) nas coleções de água, quanto pela drenagem dos terrenos alagadiços que pudessem servir-lhes de habitat. As medidas defensivas consistiam na proteção individual e coletiva contra os mosquitos, por meio de cortinados nas camas e telas nas portas e janelas das casas. As ações dirigidas ao parasito davam-se mediante a administração de quinina (medicamento extraído da casca da árvore quina) aos doentes, visando eliminar o hematozoário.

Nas campanhas que comandou, Chagas procurou colocar tais diretrizes em prática, implementado a quininização preventiva e a proteção dos indivíduos contra os mosquitos. Expressando a articulação entre as novas teorias da microbiologia e da medicina tropical e os interesses da saúde pública, ele enfatizava que os estudos sobre as distintas fases do ciclo evolutivo do hematozoário e sobre os hábitos dos vetores típicos em cada região eram fundamentais para subsidiar as medidas de combate à malária. Os conhecimentos clínicos e epidemiológicos também eram de grande relevância, acentuava, sobretudo porque os doentes constituíam o reservatório do parasito e, conseqüentemente, fontes de contaminação do mosquito e de propagação da doença.

Desde sua primeira experiência em Itatinga, Chagas formulou o princípio de que o ataque direto aos anofelinos não deveria restringir-se às ações antilarvárias, tanto pela dificuldade em realizá-las nos locais onde obras de saneamento eram impraticáveis, quanto porque, em sua concepção, os insetos deveriam ser combatidos principalmente em sua forma adulta, alada, dentro das habitações. Observando os hábitos dos anofelinos, ele considerou a malária uma infecção essencialmente domiciliária, ou seja, é nos domicílios que ocorrem, na maior parte das vezes, a contaminação do mosquito pelo doente parasitado e a infecção do indivíduo são. Assim, a destruição dos mosquitos deveria ser feita mediante a fumigação de inseticidas nestes ambientes, como o enxofre e o piretro. Expurgos domiciliários com tais substâncias vinham sendo feitos para o combate aos vetores da febre amarela na capital federal desde 1903.

Tal método, que décadas mais tarde seria utilizado em larga escala com o advento dos inseticidas sintéticos de ação residual, como o DDT, foi aplicado em Itatinga, com resultado muito favorável na apreciação de Chagas, ainda que este assinalasse a necessidade de conjugá-lo a outras medidas preventivas, em especial a aplicação de quinina. Segundo Carlos Chagas Filho, esta contribuição pioneira de seu pai para os estudos e a profilaxia da malária só seria reconhecida plenamente no I Congresso Internacional de Malariologia, realizado em Roma, em 1925.

Carlos Chagas e a descoberta de uma nova tripanossomíase humana

Simone Petraglia Kropf

Casa de Oswaldo Cruz, Fiocruz, Expansão, 20040-361, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Email: simonek@coc.fiocruz.br

Em junho de 1907, Carlos Chagas foi designado por Oswaldo Cruz, que chefiava o Instituto de Manguinhos e a Diretoria Geral de Saúde Pública, para combater uma epidemia de malária que paralisava as obras de prolongamento da Estrada de Ferro Central do Brasil em Minas Gerais, na região do rio das Velhas, entre Corinto e Pirapora. No povoado de São Gonçalo das Tabocas (onde se construía uma estação da ferrovia e que, com a inauguração desta em 1908, ganharia o nome de Lassance, em homenagem a um engenheiro da Central do Brasil), ele instalou um pequeno laboratório num vagão de trem, que também usava como dormitório. Enquanto coordenava a campanha de profilaxia, coletava espécies da fauna brasileira, motivado por seu crescente interesse pela entomologia e pela protozoologia. Num contexto de difusão internacional das teorias da medicina tropical, estas eram áreas que assumiam grande importância no projeto de Oswaldo Cruz de transformar o Instituto de Manguinhos num renomado centro de medicina experimental. Em 1908, ao examinar o sangue de um sagüi, Chagas identificou um protozoário do gêneroTrypanosoma, que batizou de Trypanosoma minasense. A nova espécie era um parasito habitual, não patogênico, do macaco.

Nenhum comentário:

Postar um comentário